“O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse, mais leve a carga.
Entre estatais e multinacionais, quantos ais!
A dívida interna. A dívida externa. A dívida eterna.
Quantas toneladas exportamos, de ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos, sem berro?”
Carlos Drummond de Andrade
O Brasil, desde a colonização portuguesa, teve suas riquezas irresponsavelmente exploradas, principalmente às referentes a mineração no Estado de Minas Gerais, reconhecido em 1709 pela Carta Régia como “Minas do Ouro”. Riquezas que serviam, única e exclusivamente à Portugal e à Inglaterra. Tempos que antecedem à Revolução Industrial no Brasil. Época em que o principal objetivo era o enriquecimento daqueles que se julgavam donos dessas terras. Enriquecimento às custas da mão de obra escrava, pelo menos até 1888, quando foi promulgada a Lei Áurea pela princesa Isabel.
É aí, nessa fase pós-imperialismo e pré-revolução industrial, ainda que tardiamente no Brasil, em função do Pacto Colonial imposto por Portugal, que surgem os primeiros industrialistas e investidores internacionais. Um grande passo para o Homo sapiens, mas com distorções que acentuariam a divisão de classes, a discriminação e o preconceito. Um outro modelo de domínio: o econômico, que rompia com as visíveis delimitações feudais e tornava as relações internacionais mais modernas e, ao mesmo tempo, mais complexas. É neste contexto que surge a figura controversa e icônica de Percival Farquhar.
Americano da Pensilvânia, Farquhar era um visionário. Homem do mundo. Controlava o serviço de bondes em Nova Iorque, dirigia a companhia de eletricidade em Cuba e na Guatemala, explorava ferrovias e mineração na Rússia, etc. No Brasil, ele entra em cena em 1905 e, por aqui, além de explorar diversos empreendimentos ferroviários, de construir o porto de Belém e a Ferrovia Madeira Mamoré, no atual Estado de Rondônia (seu frustrado projeto era o de construir uma malha ferroviária que interligasse as três Américas à partir do Canadá), ele criou em 1911 a Itabira Iron Ore Company. Sua pretensão com essa empresa, era exportar anualmente 10 milhões de toneladas de minério de ferro para os Estados Unidos.
Nesse aspecto, a gananciosa exploração mineral em Minas Gerais, deixaria de favorecer aos europeus para beneficiar os americanos, não fosse pela forte oposição do governador à época, Artur Bernardes, que consegue “engavetar” o projeto de Farquhar por um bom tempo e, logo após, a Revolução de 30, quando Getúlio Vargas assume a Presidência da República e encampa as reservas de ferro pertencentes a Farquhar e cria, em 1942, a estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD).
O propósito da Cia. Vale do Rio Doce era bem definido: fornecer matéria-prima para as siderúrgicas nacionais. Após os anos 60, a empresa expande seus negócios para o Japão e, após a inauguração da Docenave em 1962 e do Porto de Tubarão em 66, ganha o mundo até atingir, em 1976, a liderança na exportação em minério de ferro em todo o planeta.
Nos governos seguintes, a CVRD entra na mira de empresários e políticos gananciosos que iniciam um processo de sucateamento da companhia visando uma privatização pra lá de questionável, que a devolveria à mãos estrangeiras. O projeto foi concluído em 1997, com eficiência. Com o PSDB no poder, o neoliberal Fernando Henrique Cardoso leiloa a Vale do Rio Doce por R$ 3,3 bilhões. Escandalosamente mil vezes abaixo do valor do patrimônio real da empresa. Manobra financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). À esta operação, que fez parte do pacote de privatizações do PSDB, o Banco Mundial batizou de “propinização”. Ainda hoje, mais de 100 ações populares tentam anular esta venda. Apesar da remota possibilidade de êxito, juristas como Fábio Konder Comparato, Celso Antônio Bandeira de Mello, Dalmo Dallari, Eros Grau, entre outros, insistem em desfazer a falcatrua e devolver a Companhia ao seu verdadeiro dono: o brasileiro.
Hoje, rebatizada de Vale S.A., a empresa vive a era do medo. Medo de perder a liderança para a anglo-australiana BHP Billiton, medo dos chineses, que passaram de maiores consumidores para grandes produtores, medo da diminuição dos lucros. Medos que, aliados a deficiência moral impressa no DNA da companhia, impediram que a Vale investisse em técnicas mais seguras de mineração. Impediu que se sensibilizasse com as milhares de famílias e comunidades que com ela convivem, que dela dependem. O medo e a ganância impediram que a Vale abraçasse o moderno, correto e indispensável conceito de sustentabilidade.
Essa ganância que mata gente, que destrói o meio ambiente de forma irreversível. Ganância que enche os cofres do omisso Estado que nada faz para assegurar os direitos e segurança dessas famílias. Ganância que dá o tom das retóricas eleitoreiras. Ganância dos poderosos em detrimento dos direitos mínimos, individuais e sociais. Constitucionais.
Como se não bastasse tudo isso, ainda temos um presidente da República que, por pura ganância aos compromissos de campanha, se omite da responsabilidade dizendo apenas que o “problema não é seu” e trata as vítimas dessa chacina de forma insensível e desumana.
E assim, nas Minas que não são só em Brumadinho, são Gerais, a Vale expõe seu DNA: mineração, falta de compromisso, medo e ganância.