O Brasil registrou 17,5 mil notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes em 2016, segundo levantamento do Disque 100. Cerca de 67,7% das vítimas são meninas. Os dados também mostraram que a faixa etária mais atingida é de 0 a 11 anos. Já o perfil do agressor apontou homens como os principais autores. Para tentar entender os principais sinais, as consequências e o papel da família nessa situação, o Edição do Brasil conversou com Jean Von Hohendorff, mestre e doutor em psicologia da IMED e coordenador do grupo de pesquisa VIA Redes (Violência, Infância, Adolescência e Atuação das Redes de Proteção e de Atendimento).
O que é considerado violência sexual?
São todas as formas de envolvimento de uma criança ou adolescente em uma situação de cunho sexual, sem necessariamente ter contato físico. Por exemplo, existem casos em que o agressor ou agressora mostra para a criança conteúdo pornográfico ou exibe o órgão genital com a intenção de obter prazer, fala coisas, solicita que a criança fique nua e mexa no seu próprio corpo. Outros agressores podem se masturbar na frente da criança.
Quais os sinais de que a criança ou adolescente está sofrendo violência sexual?
Normalmente a vítima pode apresentar um comportamento retraído e um medo exagerado de adultos, principalmente daquele que está cometendo a violência. É natural que a criança tenha algum tipo de rejeição a esse indivíduo e não queira ficar perto e nem sozinha com ele.
Ela pode ter sinais de depressão e parar de fazer atividades que gostava. A ansiedade também é frequente, pois a criança fica em alerta e acredita que a qualquer momento pode acontecer novamente a violência sexual. Outro sinal é que ela pode voltar a ter comportamentos infantis que já haviam sido abandonados, como chupar dedo e fazer xixi na cama.
Alguns medos também são, aparentemente, inexplicáveis. Por exemplo, a novela “O Outro Lado do Paraíso” mostrou que a personagem Laura tinha medo de tartarugas, pois a violência que ela sofreu acontecia próximo a um tanque com esses animais. A criança acaba associando esses estímulos.
Outro comportamento é um decréscimo no rendimento escolar, não necessariamente nas notas, mas no sentido de não acompanhar as aulas, pois não consegue se concentrar. Todas essas mudanças bruscas e repentinas podem indicar que algo está errado.
Quais as consequências na vida de quem sofreu violência sexual?
Nós temos as físicas, decorrentes do próprio ato quando há contato físico, como dilaceração anal ou vaginal e possíveis DSTs. Essas são as menos frequentes de se perceber, pois quando a vítima é atendida, geralmente já faz muito tempo que a violência vem acontecendo. Também temos as implicações emocionais como medo, ansiedade, tristeza e, às vezes, raiva em relação ao ocorrido. As cognitivas são falta de atenção e baixa autoestima. Já as comportamentais, a criança pode se tornar apática e ter comportamentos desviantes.
Existe um perfil de quem é o indivíduo que comete violência sexual?
A criança se aproxima de pessoas que são carinhosas, afetuosas e que dão atenção. É comum que o agressor ou agressora faça uso de comportamentos de gentileza para conquistá-la. Nós precisamos desmistificar a questão de que quem comete a violência é alguém estranho. Cerca de 90% da violência sexual contra criança e adolescente é intrafamiliar, ou seja, alguém que tem laços familiares com o menor. A maioria dos agressores são do sexo masculino como o pai ou padrasto.
Mas isso não quer dizer que as mulheres também não cometam violência sexual. Os números são menores e ainda há um grande tabu em relação à violência sexual contra garotos. Existem impeditivos para que esse menino conte que sofre violência sexual, pois se fizer isso, a identidade de gênero e orientação sexual dele serão colocadas a prova. A tendência é de que esse garoto entenda que foi uma iniciação sexual e a sociedade enxerga como um garanhão. Então, os casos notificados ainda não são coerentes com a realidade.
Por que algumas crianças não contam que têm sido vítimas de violência sexual?
Sendo uma pessoa de dentro da própria casa ou do círculo de convivência da criança é natural que ela não consiga falar sobre isso ou tenha medo das ameaças do agressor. Também tem a questão de que conversar sobre assuntos relacionados a sexualidade ainda é um tabu. Se a criança fala alguma coisa relacionada a isso, a tendência é que ela seja reprimida. Então, ela entende que é um assunto que não deve ser falado. Geralmente demora de 3 a 4 anos para a vítima conseguir revelar.
Como a família deve agir quando a criança ou adolescente contar o que está acontecendo?
A primeira coisa é acreditar, afinal é muito pouco provável que uma criança consiga forjar um relato de violência sexual. Ela não tem como contar algo que nunca viveu. Mas, infelizmente, existem casos em que a família não acredita, pois o agressor ou agressora é alguém de confiança e, aparentemente, acima de qualquer suspeita. Eles precisam entender a situação, ouvir a criança e levar esse relato até o conselho tutelar, onde casos de violação de direitos de crianças e adolescentes devem ser notificados.
Existe tratamento para esse trauma? É possível superar e ter uma vida normal?
O fato da criança ter sido vítima de violência sexual não quer dizer que ela vai ficar marcada para sempre. Se tiver a intervenção e o tratamento adequado pode ter uma vida normal, mesmo depois do que aconteceu. Mas é importante saber que não vai ser um profissional de apenas uma área que vai dar conta de solucionar o problema. A violência sexual envolve psicologia, serviço social, pedagogia e direito. E todos esses serviços têm que atuar de forma coordenada.
Como é possível proteger as crianças?
A criança tem que saber que ela pode contar qualquer coisa para os pais e cuidadores. É importante estar de olho e orientar os filhos que qualquer pessoa, seja estranha ou conhecida, que pedir para que eles façam algo no qual se sintam desconfortáveis ou achem que não devam fazer, seja contado para alguém que confiem, mesmo que essa pessoa peça segredo.
As pessoas não precisam ter certeza de que está acontecendo qualquer tipo de violência contra uma criança ou adolescente para reportar ao conselho tutelar. O ECA diz que é obrigatória a notificação de suspeita ou confirmação. Muitas ocorrências permanecem em segredo por omissão de profissionais e da sociedade em geral. Esse relato tem o papel de proteger a vítima, que depois é encaminhada para os atendimentos necessários, dentre eles os de saúde.
ENTENDA A DIFERENÇA
Pedofilia | Consta na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) e diz respeito aos transtornos de personalidade causados pela preferência sexual por crianças e adolescentes. O pedófilo não necessariamente pratica o ato de abusar sexualmente de meninos ou meninas. O Código Penal e o ECA não preveem redução de pena ou da gravidade do delito se for comprovado que o abusador é pedófilo |
Violência sexual | A violência sexual praticada contra crianças e adolescentes é uma violação dos direitos sexuais porque abusa e/ou explora do corpo e da sexualidade de garotas e garotos. Ela pode ocorrer de duas formas: abuso sexual e exploração sexual |
Abuso sexual | Nem todo pedófilo é abusador, nem todo abusador é pedófilo. Abusador é quem comete a violência sexual, independentemente de qualquer transtorno de personalidade, se aproveitando da relação familiar, de proximidade social ou da vantagem etária e econômica |
Exploração sexual | É a forma de crime sexual contra crianças e adolescentes conseguido por meio de pagamento ou troca. A exploração sexual pode envolver, além do próprio agressor, o aliciador, intermediário que se beneficia comercialmente do abuso. A exploração sexual pode acontecer de quatro formas: em redes de prostituição, de tráfico de pessoas, pornografia e turismo sexual |
Fonte: Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes