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Para cientista social, descrença na mídia sustenta irracionalidade dos negacionistas do coronavírus

Pandemias não são novidades na Terra, mas um dos fatores que diferencia o momento
que estamos vivendo com o de outros, tão catastróficos quanto, é o acesso à informação. Nunca na história da humanidade foi tão fácil se informar sobre um assunto. Ainda assim, os negacionistas do coronavírus – pessoas que negam a existência e/ ou a potência do vírus – fecham-se em um universo articular. Por lá, a culpa já foi da China, de prefeitos e governadores que decretaram isolamento e distanciamento social para retardar o avanço da doença e a superlotação de hospitais, do comunismo e até de
médicos e enfermeiros que arriscam suas vidas e de seus familiares para atender a população. Para tentar entender o que pensam os negacionistas do novo coronavírus, o Edição do Brasil conversou com Jorge Alexandre Neves, cientista social e professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O que leva uma pessoa a negar o noticiário do mundo todo?
Há várias razões pelas quais as pessoas negam o noticiário. No caso do Brasil, nos últimos anos, a mídia perdeu muita credibilidade que, curiosamente, agora, com a pandemia está sendo recuperada. Pesquisas estão mostrando que as pessoas estão
assistindo mais à mídia tradicional. Mas, meios de comunicação perderam a confiabilidade porque se envolveram nas disputas políticas de forma muito explícita. No caso da Globo, o maior veículo de informação do Brasil, ela se tornou um instrumento de vazamento da Operação Lava Jato, do sistema de Justiça brasileiro e fez do ex-ministro e na época juiz, Sergio Moro, um herói. E, a Vaza Jato mostrou toda a manipulação da mídia nesse processo. Então, o envolvimento da imprensa com o jogo
político acontece em qualquer lugar do mundo, mas no Brasil ultrapassou qualquer limite razoável e isso reduziu muito a credibilidade do brasileiro na mídia. E, se você deixa de acreditar nos veículos jornalísticos do seu país, começa a duvidar dos de
qualquer lugar do mundo.

Como explicar o ceticismo nas diferentes coberturas da mídia sobre a pandemia, mas a plena confiança em uma informação veiculada num grupo de WhatsApp sem procedência conhecida e checada?
Pesquisas mostram que o WhatsApp se tornou um instrumento de informação política muito forte para as pessoas e há vários motivos para isso. Um deles é que muitas pessoas têm smartphones, mas só têm acesso livre ao WhatsApp, que é incluído em pacotes mais acessíveis das operadoras. Muitos não têm outras formas de informação. Para consumir a mídia tradicional é preciso ligar a TV ou acessar o site jornalístico pelo celular, mas se a pessoa não tem nenhum desses hábitos ou possibilidade, ela tem o WhastApp durante o dia todo. Então, ele se tornou um instrumento de informação pela facilidade de acesso. Além disso, existe uma pesquisa sobre a eleição de 2018 que mostrou a dificuldade de desfazer uma fake news. Basicamente, se você mostra uma prova que desmente uma notícia falsa positiva, há uma probabilidade maior de a pessoa voltar atrás. Agora, se a fake news é negativa, há chance de ela voltar atrás, mesmo se apresentando provas, é muito pequena.Então, as fake news têm mais eficácia quando vão na direção do que as pessoas já acreditam.

Em uma lista de 15 países consultados pelo Ipsos, o Brasil é o segundo que menos acredita na eficácia do isolamento social para reduzir as mortes por coronavírus. Nossa cultura, em algum nível, contribui para essa percepção?
Não acredito que está relacionado à cultura. A questão é, dos 15 países pesquisados, o único no qual o chefe de Estado é contrário ao isolamento é o Brasil. Então, isso revela o efeito da enorme irresponsabilidade, leviandade e absurdo que tem Jair Bolsonaro. Há análises já divulgadas que mostraram que quanto maior foi o percentual de votos em Bolsonaro em um município ou estado, menor está sendo o isolamento social (O estudo
citado é ‘More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic’ ou ‘Mais do que palavras: discurso dos líderes e comportamento arriscado durante a pandemia’, em tradução livre). Isso é uma evidência muito forte de que o que está gerando o baixo comprometimento com o isolamento social, em algumas localidades do
Brasil, são as palavras do presidente da República.

Este não é o primeiro caso de negação de fatos que a humanidade enfrenta.
Por que parte dos seres humanos tende a negar a realidade?
Boatos são antigos na humanidade. Agora, o que faz com que as pessoas neguem a realidade é justamente a forma de contato com ela. Muitas eram contrárias ao isolamento, quando a doença chega por perto e elas têm a oportunidade de
presenciá-la diretamente, tendem a mudar de posição. Então, se a pessoa não acredita na mídia e as informações que ela recebe dizem que isso é picaretagem e invenção, aquilo só vai ser uma realidade para ela, quando ela notar ao lado dela. Antes disso, é uma invenção, um boato.

Até mesmo imagens do colapso funerário em Manaus com caixões sepultados em vala coletiva foram acusadas de fake news por negacionistas. Como explicar tamanha cegueira?
Primeiro, o negacionismo está muito relacionado à baixa formação educacional e isso não é só no Brasil. Nos EUA, 25% da população acha que a Terra é plana. Segundo que, se a pessoa acredita no presidente e o prefeito de algum município está dizendo o contrário é porque ele só pode ser da oposição. E a gente vê que a base de apoio do núcleo duro da Presidência da República tem uma resiliência relativamente grande. É impressionante que a saída do ex-ministro Sergio Moro do governo causou um impacto baixo de perda de apoio ao Bolsonaro. O fato é que, no pior dos cenários das pesquisas sobre popularidade até agora, ele teria perdido entre 20% e 25% de apoio eleitoral com a saída de Moro. Muitos imaginavam que essa perda seria maior. Então, essas pessoas têm uma opinião muito firme favorável a ele e, portanto, qualquer palavra de autoridade contrária sempre vai soar como uma mentira.

No início da pandemia, por diferentes motivos políticos e econômicos, as autoridades negaram o que estava ocorrendo sob o argumento de evitar “histeria” e “alarmismo”. Isso também prejudica a percepção real do problema?
Sem dúvidas. Vamos tomar como exemplo o vídeo que o médico Drauzio Varella fez, logo no início da pandemia, dizendo que não havia motivo para alarmismo, que seria mais um vírus e que mataria mais os grupos de risco e que ele próprio continuaria andando normalmente na rua. Depois, a situação se revelou muito mais perigosa
do que os cientistas e epidemiologistas imaginavam. Até porque também há uma preocupação do gestor público de não criar alarmismo porque pode gerar custos sem necessidade. É claro que a subestimação do vírus, em janeiro e fevereiro, criou problemas para legitimidade de combate mais efetivo depois.