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OMS retira transexualidade da lista de transtornos mentais

Após 28 anos, a nova edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11) da Organização Mundial da Saúde (OMS), que substitui a CID 10, traz uma importante vitória para a população transexual: a transexualidade deixou, oficialmente, de ser considerada uma doença. Pessoas transexuais são aquelas cuja identidade de gênero (feminino ou masculino) não corresponde àquela designada em seu nascimento e, portanto, uma mudança é necessária para alcançar o bem-estar social e mental da pessoa. O Edição do Brasil conversou com Marco Aurélio Prado, doutor em Psicologia Social, professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia e coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH/UFMG) sobre a realidade da população trans, os processos de transexualidades e o significado dessa despatologização.

Quais são as diferenças entre transgêneros, travestis e transexuais?
Apenas uma pessoa que vive mudanças relativas às normas de gênero, em uma cultura e em um tempo histórico específico, pode definir como se autoidentifica.

A retirada da transexualidade da lista de transtornos mentais da 11ª CID é considerada pela comunidade LGBT uma vitória. Como foi esse caminho percorrido pelos transexuais, a sociedade e a comunidade científica até aqui?
Esta conquista é fruto de uma luta internacional conhecida como Pare a Patologização! (Stop Trans Patologization), a qual foi encampada por muitos grupos, movimentos sociais, organizações não governamentais e de profissionais em diversos países pela despatologização das transexualidades e travestilidades. No entanto, novos desafios ainda estão no cenário, pois a retirada não termina com a noção diagnóstica e normatizadora, agora, nosologicamente indicada como “incongruência de gênero” e separada para infância/adolescência e vida adulta. Há ainda muitos riscos eminentes nessa noção de incongruência, pois reside aí ideias ainda patologizadoras, mas agora as vincula a um capítulo de cuidados da saúde sexual.

O que isso muda na prática?
Temos que pensar que a OMS, quando muda sua lógica classificatória, se transforma em um norteador para diferentes países e realidades sócio-política-econômicas que possuem formas de acesso à saúde bastante diferenciadas e estruturas de serviços igualmente idiossincráticas. Isso significará em um futuro próximo que os países terão que alterar suas lógicas de definição e regulamentação dos serviços de cuidado à saúde para transexuais.

Como diferenciar a sexualidade de identidade de gênero?

A sexualidade está contornada, principalmente, pelo desejo de ter prazer e/ou amar pessoas de diferentes gêneros e as práticas sexuais das mais diversas. Identidade de gênero está contornada pelas formas de se localizar dentro de uma cultura no amplo espectro das masculinidades e feminilidades ou a nenhuma delas nas formas de expressão.

Como são os diversos processos de transexulidade?
Tal qual tudo que diz respeito à humanidade, as transexualidades são realidades singulares. Portanto, teremos sempre diversas formas de exercer/vivenciar as transexualidades. Muitas estão implicadas com formas de intervenção corporal, mas nem todas. O que evidencia que os serviços de cuidado à saúde, sejam públicos ou privados, devem garantir que as singularidades e legitimidades das formas de expressão sejam parte central desse acesso.

Como funciona o processo de transexualidade?
No Brasil, temos uma linha de cuidado no SUS de média e alta complexidade que chama-se processo transexualizador. Embora essa linha de cuidado ainda esteja calçada em uma noção patológica das transexualidades, a qual deverá ser revista em breve, ela permitiu acesso a cuidados à saúde que são importantes. Esses processos podem ser de várias formas, particularmente são mais conhecidos os processos hormonais e de intervenções cirúrgicas, embora sejam muito variados para atender as singularidades de cada pessoa. No SUS, os ambulatórios transexualizadores possuem equipes multiprofissionais contendo profissionais da psicologia, serviço social e medicina obrigatoriamente, ainda que existam ambulatórios com outros profissionais como da fonoaudiologia, odontologia e etc. A legislação brasileira permite que processos hormonais aconteçam a partir dos 16 anos sem, necessariamente, ter a autorização de responsáveis. Para intervenções cirúrgicas exige-se 21 anos.

É possível falar nos primeiros indícios de que uma criança seja transexual?
As crianças brincam com as normas e convenções sociais de gênero sempre. Experimentam, reconhecem ou não, incorporam, alteram o tempo todo. Antes mesmo de pensarmos em qualquer ideia de indício, penso que o ideal seria podermos permitir que as crianças experimentem, brinquem e encontrem formas e expressões de gênero mais confortáveis para si mesmas.

[box title=”Sangue em mãos homofóbicas ” bg_color=”#e19be8″ align=”center”]Segundos dados da ONG Transgender Europe, a LGBTfobia já matou, no Brasil, ao menos 802 travestis e transexuais nos últimos 8 anos, o que deixa o país, disparado, no topo do ranking de países com mais registros de homicídios de pessoas transgêneras. Para se ter uma ideia, no México, segundo colocado, foram registrados 229 assassinatos.[/box]

Como o apoio familiar ou, em outros casos, o repúdio afetam a saúde mental das pessoas trans?
Ao acompanhar várias experiências de transexuais e travestis nos serviços de cuidado à saúde é possível observar que o apoio familiar colabora, e muito, para que os processos de violência e preconceito sejam minimizados. No entanto, no Brasil, a maior parte das violências e violações contra transexuais e travestis ainda partem das famílias ou das relações de parentesco e/ou intimidade.

Como a discriminação tira o direito de estudo das pessoas trans?
Em Belo Horizonte, pesquisa desenvolvida pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais evidencia que 98% das entrevistadas (apenas mulheres transexuais e travestis) frequentaram a escola em algum momento, mas dessas somente 56% delas chegam no ensino médio, e dessas, menos que 3% chegam a universidade. Ou seja, percebe-se nitidamente que há uma relação direta entre a transformação corporal e expressão de gênero com a expulsão/evasão escolar. É urgente pensarmos em medidas de políticas públicas que garantam o direito à escola para transexuais e travestis, bem como que criem espaços escolares onde as pessoas sintam-se confortáveis para serem.

Atualmente, como o mercado de trabalho recebe os transexuais/transgêneros?
Há uma quantidade mínima de medidas nesse sentido no Brasil. Um ou outro projeto de apoio à entrada no mercado formal de trabalho – e nem sempre que garanta a permanência de transexuais e travestis – existem tanto por parte de algumas prefeituras como de algumas empresas. No Brasil pode-se afirmar que o Legislativo é um dos violadores dos direitos de transexuais seja pela omissão ou mesmo pela criação de leis impeditivas para a garantia dos direitos de cidadania. Diria que há muito mais discurso sobre do que realmente ações práticas que viabilizem a entrada e permanência qualificada no mercado de trabalho.

[box title=”Apoio online” bg_color=”#e19be8″ align=”center”]Existem vários canais do Youtube sobre o tema da transexualidade, muitos deles, comandados pelas próprias pessoas transgêneras. O canal Transviados, o Voz Trans e os youtubers Guilherme Góes, Mandy Candy e a professora de filosofia Luiza Coppieters são algumas das vozes na internet que dividem suas próprias experiências em seus processos de readequação de gênero.[/box]